Jorge F. Isah
Esta aula não tem transcrição ou resumo, apenas o áudio.
Jorge
F. Isah
Judas é um tipo literário muito próximo de Jó, o
personagem bíblico, em suas agruras, aflições e dores. Ao passo em que Jó sofre
exatamente por sua fidelidade a Deus, e pelo desejo sincero de retidão e
justiça (o que acaba por despertar a maldade objetiva de Satanás), Judas deseja
apenas se ver livre das amarras sociais, numa espécie de autonomismo e
independência, acreditando que suas decisões cabem apenas e exclusivamente a si
mesmo, sem se importar, ou vislumbrar, com as consequências dos seus atos. A
liberdade de Judas é pueril e enganadora; e arrasta-o para dentro do “Mal”.
O livro escrito por Thomas Hardy (um entusiasta
apaixonado pelas ideias de Darwin) foi escrito em 1895, e carregado do
naturalismo em voga, que não deixou de influenciar a literatura. Judas, por
mais que tente, ao seu jeito, fugir do destino que lhe é traçado, sucumbe à sua
inexorabilidade (referência ao personagem bíblico que traiu Jesus?)¹.
Como não sou de fazer resumo dos livros, também não
o farei neste. Apontarei, contudo, o que mais me chamou a atenção, sem fazer
spoilers, e sem desestimular o futuro leitor a emprenhar-se nas aventuras e
desventuras do protagonista:
1) Judas tenta “mudar” o seu destino, algo que os
naturalistas, e, em especial Hardy, não crê possível. Para ele, Judas será o
que é, nascido um pária, morrerá como tal.
2) Ciente do que lhe espera, Judas apela para um
autonomismo impossível, como se pudesse viver no mundo alheio ao mundo, sem que
seus atos trouxessem consequências para si e seus queridos. Pouco a pouco, no
decorrer da história, parte para a negação de Deus, fazendo do Cristianismo o
“bode expiatório” do seu sofrimento. Em uma sociedade cristã, a culpa de todas
as convenções e males se deve, portanto, ao Cristianismo, num apelo tresloucado
à razão, como sendo-a santa, pura e perfeita; de maneira que, se todos os
homens a aplicassem por completo, negando suas crenças e fé, todos seriam
felizes. Acaba-se por criar e defender um dualismo “fé x razão” no enredo, o
que é, no mínimo, reducionista, simplório.
3) Hardy não escreveu uma única linha em que não
destilasse a sua aversão ao Cristianismo, se não explicitamente (como em muitos
diálogos e pensamentos), deixou-os subliminarmente evocados em ações e
comportamentos. Porém, o Cristianismo descrito pelo autor é o que podemos
chamar de “cristianismo secular” ou “nominal”, onde a aparência cristã é
utilizada para justificar o farisaísmo e a hipocrisia do homem. Veja bem,
farisaísmo e hipocrisia não são, nem de longe, aspectos do verdadeiro
Cristianismo, mas a “máscara” daqueles que o próprio Senhor Jesus denunciou a
seu tempo. Talvez, por isso mesmo, o autor escolheu o nome “Judas” para o seu
protagonista que, mesmo vivendo por mais de três ano na companhia do Cristo,
não se furtou a traí-lo.
4) Ao fugir das convenções e de aspectos morais que
regulavam o convívio social, se viu pagando um preço alto, vivendo como um
“cigano”, juntamente com a sua família. O capricho de não querer se enquadrar
ao escopo da sociedade colocou-o na situação mais miserável que o enquadramento
social lhe destinaria. Em sua rebeldia juvenil e ingênua, acreditava possível
passar ileso, sem traumas, quebrando regras. Judas não se considera responsável
por si, mas “a chorar as pitangas” contra o inimigo a destruir-lhe a felicidade: a
sociedade; enquanto aplica-se em cavar para si e os seus o caminho de ruina.
Este é um aspecto, em que o mal dentro do homem procura uma versão de mal fora
de si, e o distrai e afasta do julgamento correto, da seriedade correta, da
conclusão correta, onde o relativismo é o tiro certeiro no vazio, e o atirador
se convence de ter acertado o alvo, como um Quixote a lutar com monstros e
demônios apenas na imaginação.
5) Outro aspecto, fruto dessa visão vitimista e
malévola, inegável em Judas e sua esposa, Sue, é o orgulho e presunção de, ao
não se curvarem aos hábitos da sua época, serem superiores aos seus
concidadãos. A prova encontra-se nas inúmeras vezes em que exaltavam suas
inteligências, raciocínios e um apelo à razão como a essência de todas as
virtudes; por conseguinte, sendo os seus detentores, consideravam-se também
especiais, enquanto eram apenas jactantes, desdenhosos e antipáticos.
6) Nem mesmo o sacrifício pessoal, como o do prof.
Richard, parece um ato isento de soberba, de autoexaltação obstinada, dominada
pela “pureza” racional.
7) Entretanto, não há como não se compadecer da
“má-sorte” e os rumos que suas vidas tomaram. Ao ponto de, sem qualquer
esperança, sobrar-lhes a loucura e o definhamento.
Judas, o obscuro, é um livro pessimista, áspero,
quase inóspito. Mesmo nos momentos mais ternos e belos, a angústia, dúvidas e
desespero estão entranhadas nas palavras, sentimentos e reações. Não é um livro
fácil de ler, pois os lampejos de esperança são quase imediatamente dizimados
por uma realidade sufocante e cruel, pela teimosia de não mudar ou ceder, e a
incapacidade de tornar à vida, de encará-la de maneira menos fatalista, onde a
liberdade individual, via de regra, é quase inexistente diante do apelo
opressivo e coercitivo do destino.
Entretanto, é possível encontrar momentos de
ternura, elegância, acabando por tornar verossímil os personagens e o enredo
como um todo.
A linguagem é
simples, sem rebuscamentos. A narrativa parece se arrastar um pouco,
especialmente na primeira metade do livro. Contudo, em sua bissecção final, ela
flui sem delongas.
Judas, o obscuro é um bom livro? Sim, sem dúvidas.
Para estar no rol dos melhores de todos os tempos, como comumente é citado nas
grandes listas? Tenho dúvidas. Talvez, precise ruminar ainda um bom tempo a
história, e, quem sabe, fazer uma nova leitura, no futuro. Certo é que, tirando
a defesa “intransigente” do racionalismo e de um certo determinismo
naturalista, a “aversão” ao Cristianismo (criando um estereótipo, uma espécie
de espantalho), o livro se sai bem.
Notas: 1- Pode-se levantar a questão de que Judas traiu a si e sua família, como alguns apontam, mas não vejo fundamento. Por outro lado, é possível que Hardy tenha se utilizado do personagem Judas, do Novo Testamento, para dizer o quanto o caminho daquele era inevitalmente lúgubre, e, de alguma maneira, não se fez a devida justiça a ele; sua culpa não era inerente mas advinda do contexto social no qual vivia. Alguns teólogos e teóricos liberais concordariam, se não no todo em parte, com essa hipótese.
_______________________________
Avaliação: (***)
Autor: Thomas Hardy
Editora: Abril Cultural
Páginas: 461
Jorge F. Isah
Indicado
pelo amigo Felipe Sabino, esta biografia trata do, talvez, maior editor
americano de todos os tempos. Evidente que é impossível mensurar quem foi o
maior ou não, mas certamente pelo volume de autores descobertos e publicados, gente
da estirpe de Fitzgerald, Hemingway e Wolfe, para citar o triunvirato dos
maiores e mais relevantes escritores dos seus tempos, e ainda o são mundo
afora, nos dá a real dimensão do trabalho engenhoso a que Maxwell Perkins se devotou
em quase cinco décadas de ofício, chegando ao cargo de Vice-presidente da
Charles Scribner’s Sons, a mais conceituada e importante editora americana na
primeira metade do século passado.
Lendário caçador e burilador de talentos, Max, como
era chamado, entendia o seu trabalho não como uma simples profissão, mas um
ministério, ao qual se entregou de
corpo, alma e espírito, e foi um dos mais relevantes, senão o maior, para os
novos rumos que a literatura tomou a partir de suas descobertas e inspiração
para autores e seus textos.
Antes de entrarmos na pessoa de Max, devo
acentuar algo: o trabalho meticuloso de pesquisa, condensação e o mergulho às
profundezas de Perkins e seus pupilos geniais. A. Scott Berg transpõe em
palavras as emoções, frustrações, lealdade e desvelo do editor com a literatura
e seus criadores. É um livro delicioso de ler, e ele consegue transportar à
simplicidade as complexas relações entre os vários protagonistas e inúmeros
figurantes. É quase impossível abandoná-lo. À medida que Berg tecia a sua rede,
é irremediável tornar-se presa, já no início da construção. Por muitas vezes,
vi-me descuidar de outros afazeres para devotar, e devorar, mais algumas
páginas e tempo na companhia de tão ilustres personalidades. Scott Berg
construiu, com talento e sensibilidade, o gênio e seus gênios, sendo ele
também, sem exagero, um deles.
Por fim, a biografia serviu de base para uma versão
cinematográfica de 2016: “O Mestre dos Gênios”(ainda não assisti, e o farei em
breve; talvez até poste a resenha aqui), com Jude Law, Colin Firth, Guy Pearce e
Nicole Kidman. E, se praticamente todas as versões cinéfilas de livros nunca
conseguem sequer igualar a obra original, não espero algo de proporções
similares quanto ao resultado, mesmo sabendo que são formas de comunicação e
arte distintas. Desejo, contudo, que a produção e direção consigam agarrar o
“espírito” do livro e transpô-lo para a tela. Já seria um grande feito.
William Maxwell Evarts Perkins, nasceu em
1884, em Nova York, filho de Elizabeth Evarts (filha de William M. Evarts,
proeminente jurista, procurador e político) e de Edwards Clifford Perkins,
advogado. Viveu a maior parte da infância em Plainfiel, New Jersey. Formou-se em
economia na prestigiada Harvard University, em 1907; e, quando se decidiu pela
carreira de editor, foi auxiliado pelo professor de literatura Charles Copeland
que se tornaria um grande amigo. Nesse período, trabalhou no New York Times
como repórter (1907 a 1910).
Sem muitas expectativas com a carreira
jornalística, mas com alguma influência nos círculos literários da Big Apple, é
contratado para o departamento de publicidade da Charles Scribner’s Sons,
editora considerada “conservadora” e que detinha títulos de autores como Henry
James, Sherwood Anderson, Rudyard
Kipling, Robert Louis Stevenson, John Galsworthy e Edith
Wharton, entre outros nomes considerados ultrapassados pelo mainstream da
época. Muitos dos autores emergentes, durante o pós-Primeira Grande Guerra,
jamais seriam publicados se não fosse o trabalho investigativo e “depurador” de
Perkins, uma vez que o conselho diretivo da Scribner’s não somente era
reticente, mas se opunha aos novos rumos em que a linguagem literária se
aventurava, mantendo-se firme na disposição de investir nos clássicos. Com leitores
fiéis, não estava disposta a romper a sua tradição editorial e investir em
livros experimentais: novas estruturas, conceitos e estéticas.
Em pouco tempo, foi promovido para uma espécie de
“auxiliar de edição”, onde ajudava na leitura e avaliação de textos originais e
inéditos. Nessa época, chegou-lhe às mãos um livro intitulado “The Romantic Egotist”, de um jovem
desconhecido, F. Scott Fitzgerald. Enquanto os colegas recusaram o livro, com a
alegação de não estar de acordo com a linha editorial, Perkins leu-o de uma
sentada e ficou maravilhado; então, rapidamente, escreveu ao autor sugerindo
algumas modificações a fim de convencer o velho “Charles” a publicá-lo. Scott
empenhou-se em reescrevê-lo, e alguns meses, entregou-o a Max com todas as
alterações propostas. Após um embate interno, Max persuadiu o “chefão”, e
recebeu o aval para publicá-lo.
Em 1920, é lançado “Este lado do Paraíso”, e
o livro se tornou um sucesso de crítica e público, lançando quase instaneamente
Fitzgerald ao estrelado, confirmando o acerto de Max e seu “feeling” editorial.
Apesar da resistência de parte da equipe, Perkins
começava a ganhar admiração e chamar a atenção. Foi ele quem lançou todos os
livros de Scott, a quem tinha por amigo, a quem aconselhou e orientou, não
somente em relação ao aspecto profissional, mas também financeiro e emocional.
A relação do autor com a esposa, Zelda, era conturbada, e Scott se submetia a
despesas enormes, um padrão de vida ostentador, noites e mais noites envolvidas
no “glamour” a que Zelda impunha o casal. Com isso, Fitzgerald teve, por muitas
vezes, que escrever literatura de segunda, terceira linha (Hemingway, de quem também
era amigo, acusou-o várias vezes de prostituição, e de desperdiçar um talento
inestimável em troca de dinheiro para munir os caprichos de Zelda), roteiros
para Hollywood (Max considerava essa opção um verdadeiro desastre na carreira
do pupilo), e palestras que odiava. Ao mesmo tempo em que Scott era um escritor
talentosíssimo, tinha as suas fragilidades: o vício do alcoolismo, ostentação social
e a indigência financeira, arrastando-o para um final onde a degradação
artística, por fim, fez claudicar e aniquilar a pessoa.
Berg ressaltou:
“Anos depois, em Paris é uma festa, Hemingway
resumiu a carreira de Fitzgerald com a imagem que primeiro chamou sua atenção
quando lia ‘O Último Magnata’: ‘Seu talento era natural como desenho feito
pela poeira nas asas de uma borboleta. A certa altura sua compreensão dele não
era maior do que a que tinha a borboleta e ele não sabia distinguir se estava
comprometido. Mais tarde, tornou-se consciente de suas asas danificadas e da
estrutura delas e aprendeu a pensar e não pôde mais voar porque perdera o amor pelo
voo e só constituía se lembrar de quando ele não exigia esforço’”.
Após a publicação de “O Grande Gatsby”, Perkins
recebeu de Fitzgerald, a indicação de outro autor: Ernest Hemingway. Scott e
Ernest se conheceram em Paris, na casa de Gertrude Stein, local onde o círculo
de escritores se encontrava para, em primeiro lugar, abastecer o ego de Stein,
insaciável, e orgias regadas a álcool e drogas sem freios e fim (muito foi
descrito em “Paris é uma festa”). Hemingway era o oposto de Fitzgerald, o tipo
de “macho alfa”, seguro e audacioso.
Novamente, Max teve de suar gotas de sangue para a
Scribner’s publicar “O Sol Também se Levanta”, em 1926. O livro era
considerado excessivamente obsceno, ao ver da direção, e não satisfazia as
exigências editoriais. Depois de inúmeras reuniões e o jeito diplomático, mas
convincente de Max, o romance veio à lume. Novo sucesso de crítica e público. E,
até a sua morte, Perkins seria o editor de Hemingway.
Certa vez, depois de insistir muito com Max (havia
anos que não tirava férias), Hemingway levou-o para pescar em Key West,
Flórida, no Golfo do México, e contou-lhe muitas das aventuras no mar,
histórias sobre pescadores, touradas e caçadas, algumas das quais ele mesmo
estava envolvido. Perkins ouviu-as e percebeu material suficiente para “Hem”
escrever um livro até então inédito: algo sobre a pesca e o mar. Fez sugestões,
considerações e incitou “Hem” a planejá-lo. Durante anos, o autor esquivou-se
de fazê-lo, mas em 1951 publicou “O Velho e o Mar”, dedicando-o ao velho amigo,
que havia falecido em 1947.
Em 1928, chega às suas mãos um calhamaço de páginas
amarradas por barbantes, de um tal Thomas Wolfe, jovem escritor da Carolina do
Norte. Havia sido recusado por todas as editoras em que enviou a sua obra, “O
Lost: A Story of the Buried Life”. Tinha cerca de 1.100 páginas e entre
300.000 e 350.000 palavras. Era um excesso para um escritor iniciante, e fora
dos padrões de edição da época. Max leu-o, considerou a ideia genial, mas era
uma obra caótica e carecia de ajustes: um corte de 100.000 a 150.000 palavras e
a reestruturação da história. Ele as sugeriu a Tom que, mesmo não gostando da
ideia, concordou e trabalhou com o editor na nova formatação.
Marcia
Davenport descreveu:
“Tudo que Max faz visa o efeito integral do livro
(...) Ele acredita nos nossos personagens, que se tornam reais para ele (...)
Mas pode pegar algo caótico, nos dar um andaime para construirmos uma casa em
cima dele (...) Sua tarefa é grande, longa, cheia de agonia e confusão”. Berg
acrescentou: “Como tantos de seus autores, ela (Marta) descobriu ao voltar
ao trabalho que os comentários de Max eram eficazes de uma forma quase
subliminar; que ele tinha um jeito de atirar observações com delicadeza como se
atirasse seixos em um lago, criando anéis de significado que cresciam até tocar
a consciência do autor”(pg. 572).
Lançado em 1929, “Look Homeward, Angel” foi
estrondoso sucesso de crítica e público, e provavelmente pela ligação quase filial
de Wolfe com Perkins: para Max, o filho que não teve (tinha cinco filhas), para
Tom, o mentor e tutor único, a relação ia do céu ao inferno e vice-versa. A
ligação entre eles é o centro da biografia de Berg e ocupa a maior parte. É
possível ver o relacionamento ultrapassar o caráter profissional e tornar-se
pessoal, emocional, quase familiar, como já descrevi. Thomas participa da rotina
dos Perkins como se fosse um membro; e, ao mesmo tempo em que ganhava o carinho
da esposa e filhas do editor, também se metia em cenas deploráveis e cruéis, ao
ponto de causar certos “tremores” na relação.
Muitos críticos e executivos da própria Scribner’s
acentuavam os méritos de Perkins nos livros de Wolfe, o que certamente deixou o
autor enciumado e rancoroso. É comum, após as crises intempestivas, Tom se
desculpar e buscar os conselhos do “papai”. Max, apesar de não se envolver na
vida dos pupilos, que também eram seus amigos, especificamente Scott, Ernest e
Tom, servia como confidente e orientador. Tentava, sempre que possível,
auxiliá-los em qualquer situação ou problema. Era generoso, amigo, confiável,
leal e um pacificador, no sentido de nunca promover disputas e impor sua
vontade, apesar de, quase sempre, convencê-los. Se Fitzgerald era frágil e
maleável, Hemingway impetuoso e confiante, Wolfe ficava no meio do caminho,
entre a vaidade, a insegurança e o melindre.
Sobre isso, Berg escreveu:
“Na raiz de toda a raiva de Wolfe estava a crença
geral de que sem Perkins ele era impublicável – um escritor fracassado. O
próprio Wolfe dera fôlego a essa noção, tornando públicos fatos que Perkins
lutara para manter privados” (pg. 451).
Em carta, Max ponderou com Wolfe:
“A minha impressão, porém, é de que você pediu minha
ajuda, de que a deseja(...) E também tenho a impressão de que as mudanças não
lhe foram impostas (você não é muito propenso a aceitar imposições, Tom, nem
eu, muito dado a fazê-las), mas, sim, discutidas, muitas vezes por horas”(...)
Acredito que o escritor, de todo jeito, deva sempre ter a última palavra, e
minha intenção sempre foi essa. Sempre adotei tal postura e às vezes cheguei a
ver o prejuízo que isso teve sobre certos livros, mas, ao menos, em igual
medida, o quanto também foi útil. O livro pertence ao autor”(pg. 457).
Max lidava da melhor forma com temperamentos tão
distintos, sempre gentil e econômico. Não era dado a exibições, rechaçava
elogios, e escondia a timidez no silêncio; os livros eram o refúgio para
afastar-se do mundo das pessoas, ao menos as reais.
A exceção foi a relação platônica com Elizabeth Lemmon. Durante a maior parte de
sua vida, correspondeu-se com ela por meio de longas cartas, nas quais se abria
de uma maneira singular. Ela era a sua confidente, a pessoa em quem mais
confiava, e com quem, certamente, caso não tivesse casado com Louise Saunders,
se uniria. Não houve qualquer relacionamento lascivo entre eles. Havia, sim, um
envolvimento emocional, fraterno, que poderia se estender a outros aspectos,
caso Max não fosse completamente leal à família. Algo verdadeiramente difícil,
não impossível, nos dias atuais. Sobretudo, era um homem de caráter, princípios
e, mesmo não havendo qualquer referência a algum relacionamento com Deus (algo
que a esposa, nos anos derradeiros do casamento, aceitou, ao converter-se ao
catolicismo), Max tinha em seu temperamento e atitudes um espírito cristão.
A relação entre Maxwell e Beth foi dedicada, honrada
e sincera, mas nada a permitir “avanços” ou aventuras extraconjugais. O fato de
Louise se dar bem com a “rival”, de se confraternizarem nos raros momentos em
que a distância (os Perkins moravam em Connecticut, os Lemmon em Baltimore,
distante 460 km) e a vida profissional exaustiva e compulsiva de Max
permitiram.
Perkins mentoreou e obteve, para outros dos seus
pupilos, grande sucesso, como Edmundo Wilson, Alan Paton, Erskine Caldwell, John
P. Marquand, Marjorie Kinnan Rawlings, S.S. Van Dine, Ring Lardner, James Jones
(autor de “A um Passo da Eternidade” e “Além da Linha Vermelha”), Marguerite Young, e a lista cresce...
A coletânea de cartas, publicada em 1950, “Editor
to Author”, descreve como foram os relacionamentos entre o gênio e seus
gênios. Em especial, Perkins foi não somente o pai às filhas que amava
devotadamente, mas também aos outros que adotou, quase gerou, e, enquanto pôde,
protegeu, orientou e entregou-os ao mundo.
___________________________
___________________________
Avaliação: (****)
Autor: A. Scott Berg
Editora: Instrínseca
Páginas: 544
Foi o primeiro
livro de Erik Larson que li. A impressão, no geral, foi boa, pois ele descreve
em detalhes os eventos históricos da "Grande Feira Mundial de
Chicago", em 1893, concomitantemente com os ataques do primeiro serial
killer americano, H. H. Holmes, na mesma Chicago e na mesma época.
Primeiramente, ressalto a profusão de
citações, a extensa bibliografia apontada, e fotografias que me pareceram
oriundas de um trabalho historiográfico dispendioso, acurado e rigoroso.
Em segundo lugar, a narrativa se assemelha
muito com os romances históricos, em voga nas últimas décadas. A diferença é
que a obra se mostra claramente histórica, mas escrita em uma linguagem
cativante, simples, íntima, onde as várias fases da feira (e da vida de seus
realizadores), de Holmes e suas vítimas, se intercalam, favorecendo a leitura,
tornando-a leve, didática, estimulante e mantendo um certo clima de suspense “noir”.
Podemos encontrar as lutas, desejos, frustrações, rivalidades, cooperações, traições
e tudo o mais que se pode ler em qualquer drama. Com isto, não estou dizendo
que Larson desejou escrever um romance, não o é, ainda que se assemelhe em
muitos pontos. Entretanto, ele se utilizou da linguagem "romancesca"
para trazer leveza e criar empatia com o leitor. Ponto para ele.
Ao traçar um
paralelo entre a Feira, Holmes e seus crimes, faz com que coisas diametralmente
díspares, como a criação de um evento suntuoso e monumental, de caráter e apelo
global, corram em paralelo à destruição provocada pelo “gênio” diabólico de
Holmes. Alguém pode dizer que, em algum aspecto, o serial killer também era um
criador, ao planejar e pôr em prática seus projetos bárbaros e atrozes. Bem,
não entendo assim, e reputo Holmes como um homem com algumas habilidades e
magnetismo pessoal, mas apenas os usando para a destruição, inclusive pessoal;
e se para destruir é necessário "criar" algo, essa criação não passa
de meios para a destruição, e não pode ser incluída no rol daqueles que
constroem a beleza do nada, como é o caso dos grandes arquitetos David Burnham
e F. L. Olmsted, entre outros, os gênios por trás da Feira de Chicago.
Se imaginarmos que a
Feira abriu espaço para as maiores inovações tecnológicas, muitas das quais se
tornariam imprescindíveis na sociedade moderna, como a eletricidade, tubos de
vácuo elétricos iluminados por correntes sem fio, o telautógrafo (uma espécie
de fac-símile primitivo), esteiras rolantes, o rádio e transmissões
por ondas elétricas, equipamentos sonoros elétricos, a roda-gigante (criada
para rivalizar com a Torre Eiffel, a principal atração da Feira de Paris, em
1889); e cientistas ilustres como Tesla, Edison, Bell, Gray; mais de 2 km
quadrados de área iluminada, com réplica monumental de pirâmides,
transatlânticos, colunas greco-romanas, tudo abarcado com o que de mais
inovador e futurista a tecnologia podia reunir e proporcionar à época, temos um
evento monumental e fascinante.
Os visitantes das mais
de 200 instalações se deslumbraram com a gigantesca, inusitada e profética
demonstração do que viria a acontecer nas próximas décadas, em termos
científicos, e a beleza incomum que os idealizadores da Feira ergueram e
revelaram ao mundo. Chicago foi, durante a Feira Mundial, a antevisão do futuro
naquele presente.
Portanto, não dá para dizer o mesmo de Holmes, um psicopata, frio, dissimulado e covarde (inspirador de outros tantos malignos homens). Holmes era a antítese de Burnham e seus colegas, e, certamente por isso, Larson colocou-os lado a lado na narrativa; uma amostra ou lembrança, ou melhor, um alerta de que se existe criatividade construtiva, existe o labor para o mal e a deficiência. Neste sentido, Holmes foi um "criador" incompleto, negativo, cruel, fraco. Sem forças e talento para produzir o bem, contentou-se em destruir; e, durante o seu julgamento, tentou se passar por vítima, utilizando-se do delírio intelectual (presente em muitos acadêmicos e cientistas modernos), a fim de suprimir a realidade, distorcendo-a, na vã tentativa de enganar, se possível, alguns quanto à sua verdadeira imagem: um homem maldito, cruel e insensível!
Larson poderia ter
reduzido em algumas dezenas de páginas a sua história, talvez não se entregando
tanto a detalhes técnicos mais, digamos, enfadonhos. Entendo, contudo, que lhe
pareceu necessário, a fim de poder aquilatar, um século depois, a grandiosidade
e dispêndio criativo, econômico e de esforço, na construção da Feira das
Feiras, a “World’s Columbian Exposition”, revelando a genialidade e
o empreendedorismo humano.
Quanto a Holmes,
aproveitando-se da ingenuidade e boa-fé das pessoas, utilizando-se do seu
carisma para torturar e assassinar gente comum, colocou-o no rol dos maiores
infames da humanidade e da história. De forma que, em meio ao brilho inventivo
da arquitetura, física, engenharia e tantos obstáculos ultrapassados pela
engenhosidade humana, temos a figura nefasta e torpe do primeiro serial killer
e sua odiosa, e não menos feia e aterradora, "criação", fazendo jus
ao título do livro.
________________________
Avaliação:
(***)
Título: O
Demônio na Cidade Branca
Autor: Erik
Larson
Editora:
Intrínseca
Páginas: 448
Jorge F. Isah
Como o título denuncia, o livro foi escrito na
forma de diário, pelo patriarca da família Utsugi.
Quase um octogenário, impotente, com terríveis dores lombares e na mão, a
gastar boa parte do dia com terapias, remédios e reclamações sem fim, é um
homem relativamente culto, que gosta de teatro, poesias e domina muitas das
tradições japonesas; é crítico, ácido, egoísta e despreza a família. Nutre
antipatia pela esposa, velha como ele, as filhas e netos. Talvez a única pessoa
a se relacionar pacificamente seja o filho Jokichi (talvez, e somente talvez,
haja algum respeito por ele; não por ele, mas pelo que conquistou na vida. Mais
adiante, entenderá), cujo distanciamento o mantém reservado a maior parte do
tempo, não somente durante as inúmeras viagens a trabalho, mas também nas
constantes reuniões que varam a noite. Utsugi quase sempre não se abstém de
humilhar e escarnecer os demais membros, de maneira insolente e nada sutil. É
rico, e isso o deixa senhor da situação, e evidência ainda mais o inconformismo
que sente com a família e a vida.
Nutre, contudo, uma obsessão pela nora,
Sasaki, mulher de Jokichi. Como disse, se existe alguma inveja quanto ao
sucesso do filho, provavelmente reside no fato dele ter amealhado o seu objeto
de adoração. Sim, o velho tem fetiche pelos pés de Sasaki (ex-dançarina de
clubes noturnos), os quais descreve com arrebatado deleite. Tudo faz para
tocá-la e desfrutar dos parcos e raros momentos em que a esperta nora
submete-se aos arroubos senis do “vovô”,
assim chamado carinhosamente. Não sem cobrar o silêncio quanto as suas
escapadas com o amante, Haruhisa, que o velho recebe em sua própria casa, e a
presenteia com um anel valiosíssimo, em detrimento de, por exemplo, emprestar
certa importância (muito inferior ao do anel) para a filha quitar o débito da
casa. Talvez sejam vinganças de um louco, o homem que perdeu completamente a
noção da razão e tem a sua consciência amortecida pela luxúria e traição, mas
talvez seja o “dane-se” que a
proximidade da morte pode se encarregar de exibir.
Tanizaki descreve toda essa amálgama de
desgraças de maneira burlesca e caricata, como se estivesse a brincar, ironizar
as maluquices do velho e o assombro dos demais personagens. Existem cenas de
nítido humor, um humor distendido, quase negro, permeado pelo ridículo e
sarcasmo. Assim, a narrativa é fluída, simples e transmite com eficiência o
clima picaresco e satírico da trajetória do ancião. A tragédia tem sempre
elementos absurdos e espalhafatosos, e aqui não é diferente.
Algumas pessoas reputam o livro como
libertador, o frescor do sexo livre, sem amarras, e desse ser um traço da
literatura japonesa não afeita aos rigores morais do Ocidente e, em especial,
do Cristianismo, uma vez que o budismo e o xintoísmo são religiões mais,
digamos, flexíveis quanto aos princípios. Será mesmo?... Não seria o
contrário? No sentido de o Japão ser um
país muito mais apegado às tradições, à honra, à família, uma moral ainda mais
palpável e elevada (no sentido de graduação) do que a nossa? Ou Sade, Diderot,
Laclos, Boccaccio, Roma, Atenas e “tutti quanti” autores e palcos centenários e milenares escreveram e foram
descritos em orgias e libertinagem? A comparação colocaria o personagem de
Tanizaki como um velhinho inofensivo e bocó, mas ainda assim um hedonista, como
outros em diferentes épocas e culturas. Porém, existem graus de imoralidade, de
vícios, assim como virtudes e bondade. O homem, seja ocidental, oriental e,
caso exista algum, marciano, é sempre o mesmo homem, indisposto ao bem e predisposto
ao mal, ainda que o mal não se manifeste em toda a sua virulência, nem o bem
algo inerente, mas fruto dos resquícios, conta-gotas, do Imago Dei. Sem entrar
nos pormenores teológicos, do ponto de vista literário, o autor denuncia a
degradação e o apodrecimento da sociedade japonesa, ao contrário da conclusão “libertária” que alguns, ou muitos,
depreendem do livro.
O velho, culto e abastado, ao manter uma relação “incestuosa” com Sasaki, em seu
ceticismo com o mundo e as pessoas, a vida, a morte e qualquer possibilidade de
esperança, transforma-a em ídolo, a deusa não somente momentânea, mas da qual,
inclusive, quer esculpir as formas exatas dos pés e colocar sobre o seu mausoléu,
e substituir os símbolos religiosos pela sua própria deidade. E isso me leva a
questionar se, no fim das contas, Utsugi não é o seu próprio deus a estabelecer
os ritos do autoculto, autoveneração e autodevoção. E Sasaki não seria o
sacrifício através do qual os seus “súditos”, a família, amigos e serviçais, conheceriam os caprichos de
um deus idoso e caquético?
Deparei-me também com a ideia de toda a narrativa
não ser nada além de imaginação e delírio do velho safado (apropriação de
Bukowski), em sua condição decrépita e caduca, já que a maior parte do livro é
narrada por ele, à exceção de dois capítulos onde a enfermeira e o médico
descrevem a sua particular condição. Seja ou não alucinação, a verdade é que
Tanizaki compôs a face de um homem com a qual muitos podem se identificar,
velho ou não, onde as consequências afetam não somente o indivíduo, mas todos ao
seu redor, especialmente os que, por um motivo ou outro, tenham intimidade e
convívio. Sem contar o pouco caso com aqueles a auxiliá-lo, a se preocuparem,
independente da motivação. Convenhamos, ele é um velho esquisito, manipulador
em sua obsessão tardia e caduca; depende de todos, mas arrasta-os consigo para
a queda vertiginosa.
Isolado em si mesmo, a sua excentricidade era
impulso, de ser o que não podia mais ser, à cata de um elixir da vida e da
juventude, onde, perdoe-me Cormac, os velhos ou fracos não têm vez!
_____________________
Avaliação:
(***)
Título:
Diário de um Velho Louco
Autor:
Junichiro Tanizaki
Páginas:
208
Editora:
Estação Liberdade
______________________
Jorge F. Isah
Imagino a receptividade e a comoção gerada pelo
lançamento do romance de Faulkner, em 1931, na América. O assunto versa sobre o
estupro de uma jovem e como isso afetou a vida de inúmeras pessoas. O ambiente
é o sul dos EUA, nos momentos finais da Lei Seca, onde a degradação moral,
ética e, sobretudo, espiritual, descreve o estado de miséria, perturbação e
desequilíbrio em uma sociedade marcada pelos “novos” ventos da modernidade e ruptura das tradições. Este livro,
guardadas as devidas proporções, é a conclusão, melhor, o aperfeiçoamento e
amadurecimento em relação aos temas originalmente propostos por Fitzgerald e a
geração perdida, no início dos anos 20.
O primeiro terço do livro é de tirar o fôlego,
digno de um manifesto de horror e terror. É impossível conter e não se
impressionar com as descrições e o clima caótico e claustrófobo, descomedido e
perverso no qual o casal de amigos se vê arrostado pelos moradores de um
alambique clandestino. Lembre-se, os EUA viviam a proibição do álcool, e o que
se viu foi a proliferação de destilarias e bares ilegais, onde o consumo não
somente era possível como a corrupção se encarregava de deixar tudo “legítimo”, a seu modo. E havia toda
uma sorte de crimes associados a ela.
Temple e Gowan, este um bêbado inveterado, egoísta
e bufão, faz tudo por um gole e a satisfação do seu desejo. Temple é a
adolescente ingênua, excessivamente vaidosa (sempre com o seu espelhinho e
maquiagem), mas isso em certas circunstâncias que, alteradas, transfiguram-na.
Não que ela perca ou suprima todas as suas peculiaridades, existem coisas que
se leva para a vida toda, mas assim como o papel de vários personagens vai se “moldando” no decorrer da narrativa,
Temple não resistirá à sua própria natureza, a tomá-la de assalto, como se ela
mesma fosse refém de si.
Procuro, na medida do possível, manter um certo
mistério; em geral, há êxito, mas nem sempre. A verdade é que a história nos
pega de uma maneira onde abandoná-la é inconcebível. De todos os livros de
Faulkner, os lidos, claro, este foi, juntamente com “Luz
em Agosto”, a me deixar mais impressionado com o estilo
e complexidade, não apenas narrativa, mas temática e profundamente
desenvolvidas.
Seja ao acentuar e potencializar certas
personalidades e apresentar outras de maneira indecisa e apática (e não raro,
esses aspectos alternam-se, a não deixar o autor um mero replicante da sua
moralidade); entender os enredos de Faulkner não é a garantia de que as
aparências são somente aparências. Ao lançar o leitor no mundo caótico, imoral,
às vezes sensível, quase sempre trágico e ironicamente cruel e paradoxal, o
leitor se vê às voltas com uma profusão de ambiguidades, hipérboles e
subjetividades a demolir o cartesianismo, e por tabela o sentimentalismo,
presente no imaginário de escritores e leitores modernos. No final, não ficará
pedra sobre pedra, mas se terá material suficiente para, ajuntado, erguer algo
novo, ainda que o novo não seja originariamente inédito, já que isso não existe
“debaixo do céu”, tal qual
afirmou o Pregador.
Do ponto de
vista faulkneriano, a resposta para o desenrolar da vida é metafísico, mas
fatalista, quase determinista, se não houvesse as implicações de agentes e
pacientes a alterarem o curso das coisas dentro do fluxo previamente
estabelecido. Ao que parece, o início e o fim estão definidos pelos deuses do
destino, enquanto os meios, as causas secundárias, estão ao sabor dos ventos
humanos. Se não, por que uma espécie de “chefão”, homem rico e poderoso, mas impotente, se daria ao luxo de
empreender uma saga a fim de manter uma amante? Ou o acusado de homicídio se
sujeitaria à morte por medo de morrer pelas mãos do verdadeiro assassino? Ou a
mulher humilhada, até o último momento, se mantém fiel ao seu algoz? Na
simplicidade ou reducionismo dessas súmulas, o autor tece um emaranhado denso,
complexo e intricado, que nenhuma imagem jamais será capaz de falar, seja por
uma frase ou parágrafo.
Faulkner descreve o mundo não preparado para os
homens, e homens não preparados para o mundo; não importa quem seja, o que
seja, quanto tenha ou não, a vida está muito além da superfície e, como o mar,
esconde enigmas que se não são impenetráveis, demandará empenho e compromisso.
Em Santuário temos o sagrado aos olhos de Deus, o
homem como o ápice da criação; para Faulkner, ele foi profanado. E não haverá
nenhum “santo” que sobreviva.
_____________________________
Nota: Este não é um livro presente
nas listas dos melhores de Faulkner, onde “Luz em
Agosto”, “O Som e a Fúria, “Enquanto Agonizo” e “Absalão” são os mais, digamos,
populares. Não li ainda o último, mas “Santuário” não está a dever a nenhum deles, pelo contrário, em vários
aspectos é melhor. Acredito que do ponto de vista “bestseller”, algo que Faulkner jamais se propôs a fazer, ele facilmente
seria o seu livro mais “palatável”.
Ainda assim, é o mesmo que comer espinha de peixe incandescente com pimenta jalapeño
e tomar um suco de vidro moído. Infelizmente, está esquecido pelas editoras, e
somente edições mais antigas, de mais de 20, 30 anos, estão disponíveis em
sebos. Merecia, certamente, a atenção e uma nova edição. Mas como Faulkner não
é politicamente correto, ou empenhado na militância ideológica, política e
social, editores podem torcer o nariz e deixar o público ainda mais órfão de
escritos universais, a expor a humanidade como ela é, e não como alguns querem
que seja. No frigir dos ovos, até mesmo aqueles que acham estar ganhando,
acabam perdendo o que não têm.
______________________________
Avaliação:
(****)
Título:
Santuário
Autor:
William Faulkner
Editora:
Abril Cultural
Páginas:
258
_____________________________
Jorge F. Isah
O que monstros, anjos, demônios e uma conspiração
secreta têm a ver com o Cristianismo? Simbioses, mutações, o bem e o mal
disputando almas e o domínio do mundo? Para muitos, nada. Mas para aqueles que
veem e estão dispostos a ver, tudo. Assim, de maneira simplista, podemos
definir o primeiro romance de Sammis Reachers, “A
Ordem Luterana da Cruz Combatente”, em seu tomo I:
uma fábula repleta de magia, ação e surpresa. Mas seria toda a verdade?
Conheço a obra de Sammis há mais de dez anos. Autor
criativo e eclético, transita por vários gêneros literários. A sua produção
explora com a mesma facilidade estilos que vão dos poemas, contos, ensaios,
coletâneas e, agora, o romance. Como a maioria dos poetas, se considera um
prosista de versos, porque a poesia nunca está distante, nunca é relegada ao
segundo plano, ou deixa de ser a mola mestra da criação. Por mais que o gênero
se distancie dessa linguagem, o poeta jamais dormita ou abandona-a.
Permeada pela cosmovisão cristã, não espere temas
proselitistas, dogmáticos ou definições teológicas. Não. Ele está disposto a
mostrar a vida, a realidade, com seus becos-sem-saída, caminhos sem volta,
naufrágios em terra e mar, mas também a possibilidade de sublimação e redenção.
Enfim, ser guiado de volta para casa... A despeito dos percalços, ataques,
aflições, as tentativas de obstruir e impedir a jornada, a ovelha ou peregrino
estará segura em Cristo, ainda que ouça o rugido dos lobos, o esgueirar das serpentes,
o tilintar de ouro e prata ou o estampido de trabucos. Como o monge diz a
Martinho: “A ordem por tantas e tantas vezes dorme.
O caos, nunca” (pg. 14). O mundo é o palco onde a
arte desvela a saga humana, mas também os bastidores e arranjos, antes, durante
e depois da representação em que cada um de nós tem papel crucial no cenário
tripartite da “guerra cósmica”.
“A
Ordem Luterana...” não obstante ter todos os elementos
épicos, de remeter às grandes obras de aventura, capa, espada, e os mais
eletrizantes thrillers de ação e combate, tem camadas as quais o leitor deve
atentar. Não se trata de outra epopeia, onde bons e maus se assanham, ou o
jirau das peripécias de bravos e covardes, nobres e canalhas, numa dicotomia
reducionista. Por natureza, o homem é ambíguo, e suas dúvidas, tal qual as
decisões, nem sempre encontram as explicações lógicas e racionais. Afinal, e não
se turve a reconhecer, sentimentos e emoções gravitam e atraem as mais
inesperadas e repentinas decisões, e denunciam não haver somente o físico, mas
também o transcendente.
De um lado, a “Ordem”, seus homens e anjos, do outro, o “Deicídio” (cujo objetivo, como o próprio nome indica, é a morte de
Deus e seus filhos), constituído por homens e demônios. Entre eles, a
humanidade em sua placidez ignota, capaz de acreditar somente naquilo que os
olhos veem, ou não veem. Entretanto, existe um mundo, ou mundos, alheios aos
olhos físicos e disponíveis exclusivamente aos olhos espirituais. E neste campo
se desenrola a guerra iniciada no Éden, em que Adão se fez presa fácil para as
artimanhas do diabo, vítima da sua soberba e inveja.
Os cambiantes, mistura de humanos e seres
angélicos, são a elite dos agentes de ambas as forças. E a maior parte dos
embates se dá com eles. Por falar nisso, o terço final do livro é de tirar o
fôlego, literalmente. Para quem gosta de ação, reviravoltas e emoções, é um
prato cheio; sem esquecer as várias esferas subentendidas às quais o autor
propositalmente ofertou ao leitor, não como um “plus” ou complemento, mas a essência, algo imprescindível...
Ponderando mais sobre as entrelinhas, das camadas criadas pelo autor, e elas
são tantas e tão distinguíveis que supor ou apegar-se à ideia do livro ser
apenas “distração” não somente
é simplista, equivocada, mas ilegítima; facilmente pode-se notar a sua condição
ou posição (sim, caro leitor, estou a falar de si), à medida que a narrativa se
desenrola. Pode-se vislumbrar o movimento no tabuleiro, qual a ameaça e o
quanto se está ou não seguro.
A história vai muito além das homenagens a Dumas,
Stevenson, Scott, Tolkien ou Lewis, para ficar apenas em alguns. Ela trata da
luta instalada no íntimo, onde o sopro divino, ou imago dei, colide com os
efeitos noéticos da Queda. E este contexto é muito maior do que as explosões,
perseguições, duelos, estratégias, complôs e tantos outros elementos a permear
o gênero. Por mais que você resista, o livro fala e trata de você. E, por isso,
é tão necessária a leitura de “A Ordem...”, pois, ao sentir-se preso, angustiado, certamente também se
sentirá liberto e protegido.
Sammis conhece muito bem isso, porque
viveu, e ainda vive, nessa “corda bamba”, mas na convicção de transpor seguramente o fio tênue, mas
irrompível, a encerrar o fim da sua fé. Ele fala de si e, por isso, fala de
mim, de você, com propriedade. Mesmo não havendo dois seres humanos iguais,
existe uma essência que compartilhamos e que nos tornam membros de uma mesma
ordem ou caos. E nas peculiaridades encontramos o universal, sem os
malabarismos burlescos e artificiais dos antropófobos e fatuados.
Mostra que é possível divertir e pensar,
sem abrir mão da verdade, mesmo envolta em sombras e muita, muita fumaça e
poeira.
_______________________
Avaliação: (****)
Título:
A Ordem Luterana da Cruz Combatente
Autor:
Sammis Reachers
Páginas:
321
Link
do autor: httpd://linktr.ee/sreachers
Email:
sreachers@gmail.com
________________________
Tive o privilégio de ler as provas do mais recente
livro lançado pela Editora Sator, “Carta aos Loucos”, de Carlos Nejar, pelas
mãos do editor e amigo, Felipe Sabino. Conhecedor do meu apreço pela poética do
gaúcho, concedeu-me a honra de lê-lo mesmo antes da publicação. E o que dizer
da prosa escrita pelo poeta?
O
mínimo é que, como sempre, o texto de Nejar é surpreendentemente belo, profundo
e reflexivo. Onde as pistas e enigmas, como no desvendar de um mistério, nos
revelam por meio dos símbolos, sonhos e pesadelos, alegrias e tristezas, dramas
e comédias, o homem em sua essência diametralmente complexa. Constrói-se o
integral a partir de fragmentos, reflexos, átimos da intrincada natureza e
relações, muitas vezes evidentes e, outras tantas, inexpugnáveis... O leitor
não tem a visão geral, do todo, mesmo diante da luz quase a cegá-lo; é
necessário tatear, cuidadosa e lentamente a fim de não se ver arrastado para
fora da trilha meticulosa e escavada impecavelmente na palavra. Certamente, não
é um livro para o leitor apressado ou displicente, ou algo a se fazer de
qualquer maneira.
O fato de Nejar ser principalmente
reconhecido por sua obra poética pode levar alguém a deduzir que se trata de um
prosista menor, de segunda classe; ledo engano! As referências, citações e
camadas sobre camadas de erudição não o tornam ininteligível, posto ser capaz
de “traduzir” para o leitor o conhecimento e sabedoria e espírito luminares a
permear cada frase, parágrafo, página, e encher os nossos olhos mortais dos
encantos sobrenaturais. Ele deve ser lido. Tem de ser lido. Pode ser que a luz
o sufoque, ou o afogue, caro leitor, porém a palavra estende-lhe a mão e puxa-o
ao convés, o lugar seguro, onde poderá descansar a alma e não sucumbir às
armadilhas das circunstâncias, do mundo a espreitá-lo, e vir a dizer como o
personagem Almado: “Não me afogo”. Porque a palavra é viva e remissória, e
envolve-nos em sua maravilhosa graça.
E as coisas grandiosas se embaralham às prosaicas
sem que uma cause inveja ou dano à outra, e ambas, em meio às memórias, o
discorrer do tempo, a razão e Assombro (nome da cidade onde se desenrola a
narrativa e também da esposa do narrador, Israel Rolando, ex-capitão da marinha
mercante e, portanto, alusão ao trabalho de conduzir os leitores, tirá-los do
emaranhado de conjecturas e instalá-los na sã loucura), amores, perseguições e
morte, seja no barulho ou silêncio, começam, desenrolam e se consumam no avassalador
amor, sublime, transcendente, divino.
Mas nem tudo são flores. Há, entretanto, o lado
menos esperançoso e otimista onde o homem censura, o poder silencia, enquanto
se justifica em palavras, e o subterrâneo das consciências é raso, ou profundo
demais. No primeiro, está tão visível aos olhos de quem não vê que é impossível
notá-lo. No segundo, impossível alcançá-lo. Mas o poeta, sabedor das dores e
angustias não se entrega a elas, nem mesmo ao obstinado tempo, onde o espírito
não sai ileso, posto redimido pela palavra, avesso ao tempo, na eternidade. Não
se desgruda dele o dizer de Alves: “Estou louco de bem”. Até que a paz não seja
mais do que o encontro de inúmeras e incessantes batalhas.
Este é um livro do homem, mas também de Deus. Do
Deus-Homem. De milagres, gênesis, recomeços e ressurreições. O sarau de ironia,
humor e graça, e a destrambelhada loucura, cuja missiva, “Carta aos loucos”, é
endereçada a mim, a você, a todos que, diante da sabedoria dos homens não
conheceu a Deus, e aprouve a ele nos salvar e se fazer conhecido pela loucura
do evangelho de Cristo. De forma que a loucura de Deus é mais sábia do que a
dos homens, pois se discerne espiritualmente.
Então, tem-se a luz. E ela nada pesa.
_____________________________________
Avaliação:
(*****)
Título:
Carta aos Loucos
Autor:
Carlos Nejar
Editora:
Monergismo (Selo Sator)
Páginas:
180
______________________________________